Wednesday, December 26, 2007

Traduzir é Arte


Uma palavra morre

Quando falada

Alguém dizia.

Eu digo que ela nasce

Exatamente

Nesse dia.





A word is dead

When it is said,

Some say.

I say it just

Begins to live

That day.



Emily Dickinson, tradução de Idelma Ribeiro de Faria

Cântico Negro






Poemas de Deus e do Diabo (1925)






"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os braços, e seguros


De que seria bom que eu os ouvisse


Quando me dizem: "vem por aqui!"


Eu olho-os com olhos lassos,


(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)


E cruzo os braços,


E nunca vou por ali...


A minha glória é esta:


Criar desumanidade!


Não acompanhar ninguém.


- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade


Com que rasguei o ventre à minha mãe


Não, não vou por aí!


Só vou por onde


Me levam meus próprios passos...


Se ao que busco saber nenhum de vós responde


Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,


Redemoinhar aos ventos,


Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,


A ir por aí...


Se vim ao mundo, foi


Só para desflorar florestas virgens,


E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!


O mais que faço não vale nada.


Como, pois sereis vós


Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem


Para eu derrubar os meus obstáculos?...


Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,


E vós amais o que é fácil!


Eu amo o Longe e a Miragem,


Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide!


Tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,


Tendes pátria, tendes tectos,


E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...


Eu tenho a minha Loucura !


Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,


E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...


Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.


Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;


Mas eu, que nunca principio nem acabo,


Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!


Ninguém me peça definições!


Ninguém me diga: "vem por aqui"!


A minha vida é um vendaval que se soltou.


É uma onda que se alevantou.


É um átomo a mais que se animou...Não sei por onde vou,


Não sei para onde vou


- Sei que não vou por aí!




José Régio

Ao Vento Encontrei Este Pensar

Como já passou pela cabeça de todos os homens sãos o seu próprio suicídio, poder-se-á reconhecer, sem outras explicações, que há uma ligação direta entre este sentimento e a atração pelo nada.

Albert Camus

Faz De Conta...


Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta verde cintilante de olhos que vêem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de marinheiros que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta que tudo o que tinha não era de faz-de-conta, faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a guiava pela floresta de açudes e tranqüilidade, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando.


Clarice Lispector

Friday, December 21, 2007

Para Poder Morrer


Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.
Porque assim é preciso
Para que tu vivas.

Hilda Hilst

Tuesday, December 04, 2007

Tela


Falei na evocação a Bruegel na cena do filme de Fernando Meireles, baseado no romance de Saramago, mostrei a foto do Estadão e esqueci (ah, cabeça de vento...) de postar o original.
Aqui vai, a Parábola Dos Cegos de Peter Brueguel.
PS: No filme, há referências a outras obras de arte. Vale a pena ficar de olhos bem abertos (sem trocadilho)

Da página 64...


"Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir- nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo- nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando".

José Saramago in Ensaio Sobre A Cegueira

Foto do Estadão, no set de filmagem de Blindness (Fernando Meireles), em cena que evoca Brueguel.
Mal posso esperar pela estréia!