Wednesday, December 26, 2007

Traduzir é Arte


Uma palavra morre

Quando falada

Alguém dizia.

Eu digo que ela nasce

Exatamente

Nesse dia.





A word is dead

When it is said,

Some say.

I say it just

Begins to live

That day.



Emily Dickinson, tradução de Idelma Ribeiro de Faria

Cântico Negro






Poemas de Deus e do Diabo (1925)






"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os braços, e seguros


De que seria bom que eu os ouvisse


Quando me dizem: "vem por aqui!"


Eu olho-os com olhos lassos,


(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)


E cruzo os braços,


E nunca vou por ali...


A minha glória é esta:


Criar desumanidade!


Não acompanhar ninguém.


- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade


Com que rasguei o ventre à minha mãe


Não, não vou por aí!


Só vou por onde


Me levam meus próprios passos...


Se ao que busco saber nenhum de vós responde


Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,


Redemoinhar aos ventos,


Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,


A ir por aí...


Se vim ao mundo, foi


Só para desflorar florestas virgens,


E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!


O mais que faço não vale nada.


Como, pois sereis vós


Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem


Para eu derrubar os meus obstáculos?...


Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,


E vós amais o que é fácil!


Eu amo o Longe e a Miragem,


Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide!


Tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,


Tendes pátria, tendes tectos,


E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...


Eu tenho a minha Loucura !


Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,


E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...


Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.


Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;


Mas eu, que nunca principio nem acabo,


Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!


Ninguém me peça definições!


Ninguém me diga: "vem por aqui"!


A minha vida é um vendaval que se soltou.


É uma onda que se alevantou.


É um átomo a mais que se animou...Não sei por onde vou,


Não sei para onde vou


- Sei que não vou por aí!




José Régio

Ao Vento Encontrei Este Pensar

Como já passou pela cabeça de todos os homens sãos o seu próprio suicídio, poder-se-á reconhecer, sem outras explicações, que há uma ligação direta entre este sentimento e a atração pelo nada.

Albert Camus

Faz De Conta...


Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta verde cintilante de olhos que vêem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de marinheiros que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta que tudo o que tinha não era de faz-de-conta, faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a guiava pela floresta de açudes e tranqüilidade, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando.


Clarice Lispector

Friday, December 21, 2007

Para Poder Morrer


Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.
Porque assim é preciso
Para que tu vivas.

Hilda Hilst

Tuesday, December 04, 2007

Tela


Falei na evocação a Bruegel na cena do filme de Fernando Meireles, baseado no romance de Saramago, mostrei a foto do Estadão e esqueci (ah, cabeça de vento...) de postar o original.
Aqui vai, a Parábola Dos Cegos de Peter Brueguel.
PS: No filme, há referências a outras obras de arte. Vale a pena ficar de olhos bem abertos (sem trocadilho)

Da página 64...


"Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir- nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo- nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando".

José Saramago in Ensaio Sobre A Cegueira

Foto do Estadão, no set de filmagem de Blindness (Fernando Meireles), em cena que evoca Brueguel.
Mal posso esperar pela estréia!

Tuesday, November 27, 2007

Pertinente


Histórias de Literatura e Cegueira (Record, 160 pp., R$ 30) de Julián Fuks é um híbrido entre ensaio e ficção. A partir da vida e obra dos escritores Jorge Luis Borges, João Cabral de Melo Neto e James Joyce, Julián Fuks constrói pequenas histórias fragmentadas de momentos da trajetória de cada um desses autores, que possuem em comum a cegueira precoce ou tardia. Cenas da criação de poemas, contos, ensaios, romances são abordados como uma ficção sobre outra ficção. "Acho que o que essas histórias transmitem é que sempre se produz uma relação muito pessoal e particular com a cegueira", diz o autor.

O lançamento da obra acontece no dia 27/11, na Feira Moderna (R. Fradique Coutinho, 1246/1248, Vila Madalena - SP - Tel. 11-3032 2253).

Friday, November 23, 2007

Lucidez


“Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”


Clarice Lispector

Monday, November 19, 2007

... De Uma Carta

"Clarice Lispector é uma coisa escondida sozinha num canto, esperando, esperando. Clarice Lispector só toma café com leite. Clarice Lispector saiu correndo correndo no vento na chuva, molhou o vestido perdeu o chapéu. Clarice Lispector é engraçada! Ela parece uma árvore. Todas as vezes que ela atravessa a rua bate uma ventania, um automóvel vem, passa por cima dela e ela morre. Me escreva uma carta de 7 páginas, Clarice".

Clarice Lispector, por Fernando Sabino. O escritor já havia terminado sua longa carta, tendo, inclusive, assinado-a. Mas, parece que ao perceber que ainda resta meia folha disponível, lançou-se nesse improviso lírico, assinando-o ao final. Carta manuscrita, enviada de Nova York e datada de 10 de junho de 1946. Arquivo Clarice Lispector da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Tuesday, November 13, 2007

Uma Oração



Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo.

Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir.

Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou.

Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.


Jorge Luís Borges

Tuesday, November 06, 2007

Vale A Pena Ler


" Deslizo para esta solidão demasiado humana de não poder voltar a ser sozinho, como era quando tu existias, nesta mesma cidade, e eu já nem sequer pensava em ti ".


Inês Pedrosa in Fazes-me Falta

Conclusão De Poeta


"Um dia temos de escolher entre a dor que já padecemos e a que tentamos inventar".


Alberto da Cunha Melo in O Cão De Olhos Amarelos

Soltas...


"Depois de várias tempestades e naufrágios, o que fica em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro."


...



"Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas... Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros.

De não morrer, de não sufocar, de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento.

Ser novo."



Caio F.

É isso aí...

"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro".

Clarice Lispector

Tuesday, October 30, 2007

Hilda

Penso linhos e ungüentos
para o coração machucado de Tempo.
Penso bilhas e pátios
Pela comoção de contemplá-los.
(E de te ver ali
À luz da geometria de teus atos)
Penso-te
Pensando-me em agonia. E não estou.
Estou apenas densa
Recolhendo aroma, passo
O refulgente de ti que me restou.

Hilda Hilst Do Amor, Massao Ohno Estúdio, 1999

Tuesday, October 23, 2007


Sobre os bailes às sextas-feiras em Nordestina, cidade onde se passa o Tempo da narrativa... Diz-nos o narrador:

"Houve um tempo em que o salão ficava lotado. No tempo de Antônio, não. Como a cada semana ia-se embora um, os pares foram se desfazendo, deixando cada vez mais ímpares desemparelhados. Depois foi a vez dos ímpares irem ficando também cada vez menos, coitados desses, é impressionante como os números ímpares são muito mais tristes do que os pares".


Adriana Falcão in A Máquina

Wednesday, October 17, 2007

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti, como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto o nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz, seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga

Só Alguns Cravos



Nada sei de tílias e carvalhos
agapantos, tulipas, jasmins do Cairo.
Conheço bem urtiga, as locas, o mato
algemas de cipós, liana em laços.
Por sorte, só por sorte ainda guardo,
naquele pote a colônia macerada
— dói a alma, dói e não passa —
lembrando a timidez dos bredos
selvagens.
E, agora para enfeitar uma casa
alva casa entre gramas sem trato
vôo pousado, varanda em asas
eu escolhi, só alguns cravos.
Cravos sem sangue, mas... encarnados.


Debora Brennand

Tragédia Brasileira



Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade.
Conheceu Maria Elvira na Lapa — prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma
aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico,
dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez
nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos,
Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp,
outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato,
Inválidos...

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência,
matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida
de organdi azul.
Manuel Bandeira

Cemitério Dos Vivos


"Vista assim de longe, a noção de horror que se tem da loucura não parte da verdadeira causa. O que todos julgam é que a coisa pior de um manicômio é o ruído, são os desatinos dos loucos, o seu delirar em voz alta. É um engano. Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação a outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso da loucura é o silêncio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos."


Lima Barreto

Thursday, October 04, 2007

Leia o Livro...


... Veja o Filme. Diga Não À Pirataria


ELITE DA TROPA


Santa Teresa, Domingo, Quatro Da Tarde


Este é o relato fiel do que Amâncio contou:

“Eu e meu parceiro voltávamos para o 2º Batalhão no Gol descaracterizado que a gente usava em algumas missões. Estávamos na rua Almirante Alexandrino, em Santa Teresa, porque tínhamos seguido um cara que fazia a ligação entre os traficantes do morro Santa Marta e os vagabundos do Tabajara. Mas perdemos o cara e, como já tinham passado as 24 horas de nosso plantão, resolvemos voltar. Ali em cima, perto da favela do Balé, tem uma bifurcação. Queríamos descer para o Cosme Velho e Laranjeiras, mas o meu parceiro, que dirigia o carro, pegou o lado errado. Quando a gente viu, estava num declive muito íngreme que nos levava direto para o miolo da favela. Não dava para recuar, nem para frear, abandonar o carro e correr a pé, de volta. A gente praticamente deslizava para o meio da favela. Nosso carro era uma bandeira só. Porra, dois homens, num Gol daqueles, ou a gente era bandido ou polícia. Nos dois casos iríamos tomar tiro. O carro seguiu devagar, ladeira abaixo, e já dava pra ver que os traficantes estavam reunidos bem no meio da rua. Estavam distribuindo as cargas e as armas. Tive a intuição de que a gente só tinha uma saída, acelerar. “Gritei: acelera, pisa até o fundo e abaixa a cabeça. Parecia um strike no jogo de boliche. O carro disparou ladeira abaixo e nós pegamos uns três ou quatro. Foi uma puta porrada; voou moleque pra todo lado; o carro capotou algumas vezes. Consegui escapar, no meio de uma chuva de bala. Corri atirando e buscando uma cobertura. Não sei o que aconteceu com o Amílcar. Não pude mais olhar pra trás. Só fiz correr pelos becos na direção oposta à da entrada. Você deve se lembrar da favela. Ela fica num vale, entre a ladeira que desce de Santa Teresa e a escadaria que sobe, na outra ponta. Fugi pra escadaria. Eles não me seguiram. Devem ter ficado cuidando dos feridos. Vai ver que o chefe estava entre os atropelados. Corri com todas as minhas forças e subi a escadaria pulando os degraus. Quando estava mais ou menos na metade, apareceram uns colegas do 1º Batalhão no alto da escadaria. Fiz um sinal e me senti salvo pelo gongo. “De repente me apontam o fuzil lá de cima e eu só sinto aquele coice na barriga. Ficou tudo preto. Acordei aqui, depois da cirurgia. Foi tiro amigo, meu irmão. Tiro amigo. Agora, eu te pergunto: por quê? Está certo que sou negro e que estava armado e sem uniforme, mas, porra, para quê atirar antes de identificar o camarada?” Amâncio não passou daquele dia. No enterro, na salva de tiros, tive vontade de mandar pararem aquela farsa, aquela palhaçada. Mas pensei na viúva, no filho, ponderei um pouco e achei que o melhor mesmo seria colocar uma pedra no caso. Melhor ter um pai herói, morto pelos inimigos, do que vítima de um mal-entendido. Digo mal-entendido para manter um certo nível de sobriedade, em homenagem à memória de um amigo querido, um homem de valor. O que senti mesmo foi vontade de chorar e de vomitar as verdades sobre essa merda toda".


Luís Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel

Objetiva, Rio de Janeiro

Poema


A minha vida é o mar o Abril a rua

O meu interior é uma atenção voltada para fora

O meu viver escuta

A frase que de coisa em coisa silabada

Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro

Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações

Olho e confronto

E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar

São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade

Pois nenhum outro senão o mundo tenho

Não me peçam opiniões nem entrevistas

Não me perguntem datas nem moradas

De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente

Cada dia preparada


Sophia de Mello Breyner

Wednesday, September 26, 2007

O Bicho


Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.


Manuel Bandeira

Os Ombros Suportam o Mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho

.E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prosseguee nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.


Carlos Drummond de Andrade

O Amor Esquece De Começar


Quando estamos sozinhos, somos pela metade.
Quando somos dois, somos um.
Quando deixamos de ser um dos dois,
não somos nem a metade que começamos a história.


Fabrício Carpinejar

Friday, September 21, 2007

Aperitivo...


... de Amor Nos Tempos Do Cólera.
Para quem tem um amor guardado no tempo, ou num espelho da casa.


"Certa noite entrou na Pousada do Sancho, um restaurante colonial de alto nível, e ocupou o canto mais afastado, como costumava fazer quando se sentava sozinho para comer suas merendas de passarinho. De repente viu Fermina Daza no grande espelho do fundo, sentada à mesa com o marido e outros dois casais, num ângulo em que ele podia vê-la refletida em todo o seu esplendor. Estava indefesa, conduzindo a conversação com uma graça e um riso que crepitavam como fogos de artifício, e sua beleza ficava mais radiante debaixo dos enormes lustres de pingentes: Alice tinha tornado a atravessar o espelho.Florentino Ariza a observou à vontade e quase sem respirar, viu-a comer, viu-a apenas provar o vinho, viu-a tagarelando com o quarto Sancho da estirpe, viveu com ela um instante de sua vida sentado em sua mesa solitária, e durante mais de uma hora flanou sem ser visto pelo recinto vedado de sua intimidade. Depois tomou mais quatro xícaras de café para fazer tempo, até que a viu sair confundida com o grupo. Passaram tão perto que ele distinguiu o cheiro dela entre as lufadas de outros perfumes de suas acompanhantes.A partir dessa noite, e durante quase um ano, manteve um assédio tenaz ao proprietário da pousada, oferecendo-lhe o que quisesse, em dinheiro ou em favores, para chegar ao que mais lhe apetecesse na vida, desde que lhe vendesse o espelho. Não foi fácil, pois o velho Sancho acreditava na lenda de que aquela preciosa moldura talhada por ebanistas vienenses era gêmea de outra que pertencera a Maria Antonieta, e que desaparecera sem deixar rastro: duas jóias únicas.

Quando por fim cedeu, Florentino Ariza pendurou o espelho na sua casa, não pelos primores da moldura e sim pelo espaço interior, que tinha sido ocupado durante duas horas pela imagem amada.”


Gabriel Garcia Márquez
(fotografia do filme Somewhere In Time)

Tuesday, September 18, 2007

A Menininha E O Gerente


- Não, paizinho, não! Quero ir com você!

- Mas meu bem, não posso levar você lá. O lugar não é próprio. Não vou demorar nada, só dez minutos. Seja boazinha, fique me esperando aqui.

- Não, não! - a garotinha soluçava. Agarrou-se à calça do pai como quem se agarra a uma prancha no mar.

Ele insistia:

- Que bobagem, uma menina de sua idade fazendo um papelão desses.

- Você não volta!

- Volto, ora essa, juro que volto, meu amor.

Prometendo, ele passeava o olhar pela rua, impaciente.

Ela baixara a cabeça, chorando. Estavam diante da papelaria. O gerente assistia à cena. O homem aproximou-se dele:

- Faz-me o obséquio de tomar conta de minha filha por alguns instantes? Vou a um lugar desagradável, não posso levá-la comigo.

- Mas...

- Quinze minutos no máximo. É ali adiante. Muito obrigado, hein? E sumiu.

A garotinha continuava de olhos baixos, imóvel, o dorso da mão esquerda junto à boca. O gerente passou-lhe a mão nos cabelos, de leve.

- Vem cá. Ela não se mexeu.

- Como é que você se chama? Carmen? Luísa? Marlene?

Como não respondesse, o gerente foi desfiando nomes, sem esperança de acertar. Mas ao dizer "Estela", a cabecinha moveu-se, confirmando.

- Estela, você sabe que está com um vestido muito bonito?

Estela tirou a mão dos olhos, examinou o próprio vestido e não disse nada. Mas o gelo fora rompido. Daí a pouco o gerente mostrava-lhe a caixa registradora e autorizava-a a marcar uma venda de 200 cruzeiros.

- Olha um gatinho. Ele mora aqui?

- Mora. - E que é que ele come?

- Papel. - Mentiroso!

- Então pergunte a ele.

O gato acordou, deixou-se afagar e tornou a dormir, desta vez nos braços de Estela. O gerente olhou o relógio; tinham se passado quinze minutos, o homem não aparecia. "Bonito se ele não vier mais. Que vou fazer com esta garotinha, na hora de fechar?" Tentou lembrar o rosto do desconhecido; impossível. Já pensava em telefonar para a polícia, quando Estela o puxou pela perna:

- Além da máquina e do gatinho, você não tem mais nada para me mostrar? Ele abarcou com a vista a loja toda e sentiu-a mal sortida, pobre. "Eu devia ter aberto uma loja de brinquedos, pelo menos um bazar." Experimentou com Estela o apontador de lápis, o grampeador. E o homem não vinha. É, não vem mais. Estela andava de um lado para outro, dona do negócio. Ele, inquieto. - Não mexa nas gavetas, filhinha.

- Não sou sua filhinha.

- Desculpe.

- Desculpo se você deixar eu abrir.

- Então deixo. Dentro havia balões, estrelinhas, saldo do último Natal. E ele que não se lembrava daquilo. Estela riu de sua ignorância, e o homem não vinha. O movimento de fregueses declinava. Na calçada, as filas de lotação iam crescendo. Daí a pouco, a noite.
Estela soprou um balão, outro, quis soprar dois ao mesmo tempo. Um estourou. Ela assustou-se. Ele riu. "Se o homem não aparecesse mais, que bom! Aliás, a cara dele era de calhorda. Ainda bem que me escolheu." Levaria Estela para casa, a mulher não ia estranhar, fariam dela uma filha - a filha que praticamente não tinham mais, pois casara e morava longe, no Peru.
E se o pai reclamasse depois? Ora, quem entrega sua filha a um estranho, diz que vai demorar quinze minutos, passa uma hora e não volta, merece ter filha?

O empregado arriava a cortina de aço quando apareceram duas pernas, um tronco inclinado, uma cabeça.

- Dá licença? Demorei mais do que pensava, desculpe. Muito obrigado ao senhor. Vamos, filhinha. O gerente virou o rosto, para não ver, mas chegou até ele a despedida de Estela:

- Até logo, homem do balão! E a filha ficou mais longe ainda, no Peru.


Carlos Drummond de Andrade

Borges


“Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção”


Jorge Luís Borges

O Lado Fatal







Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital e partiu.
Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?) o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu coração emudecido e o meu, varados por essa dourada foice. Por onde vou deixo os rastros de um sangue denso e triste que não estancará jamais.
O meu amado tinha tantas manias: perdia canetas, lápis, chaves. Houve um livro que comprou três vezes em um mês: depois encontramos todos e mais um sob velhos jornais. Mandei fazer uma estante nova para organizar seus livros: mas quando ele se foi, mas que livros havia ali de novo jornais. Nunca sabia bem por que os guardara. Eram parte do seu ninho, como nossos lençóis e os móveis da sala. Não conseguia sentar-se mais que meia hora para escrever: vinha ao meu escritório, usava de pretextos para me distrair, dava um beijo, fazia confidências, comentava assuntos do dia. Quando me via triste, dizia entre compassivo e magoado: ”Você hoje está numa melancolia profunda?” Certa vez discutimos, e ele deixou sobre minha máquina de escrever um bilhetinho: “Hélio Pellegrino ama Lya Luft.” Nunca tivemos mais que vinte anos.
“A morte, velha amiga, me sorri: agora tem do seu lado aquele que me foi tudo nesta vida. Tem mãos macias a velha senhora, traiçoeiras e leves mas reveladoras: porque um dia me recolherá também para debaixo do seu manto e haverá esplendor.”






Lya Luft

Opressão

O meu coração está carregado, carregado.
Vou até à varanda, os meus dedos afagam a pele tensa da noite.
As luzes da comunicação apagaram-se,
as luzes da comunicação apagaram-se.
Ninguém me levará ao sol ou me apresentará o carnaval dos pardais.
Relembra o vôo:
o pássaro em si é mortal.

Forough Farrokhzad

Cinzas




No dia do meu casamento eu fiquei muito aflita.
Tomamos cerveja quente com empadas de capa grossa.
Tive filhos com dores.
Ontem, imprecisamente às nove e meia da noite,
eu tirava da bolsa um quilo de feijão.
Não luto mais daquele modo histérico,
Entendi que tudo é pó que sobre tudo pousa e recobre
E a seu modo pacifica.
As laranjas freudianamente me remetem a uma fatia de sonho.
Meu apetite se aguça, estralo as juntas de boa impaciência.
Quem somos nós entre o laxante e o sonífero?
Haverá sempre uma nesga de poeira sobre as camas,
Um copo mal lavado. Mas que importa?
Que importam as cinzas,
Se há convertidos em sua matéria ingrata,
Até olhos que sobre mim estremeceram de amor?
Este vale é de lágrimas.
Se disser de outra forma, mentirei.
Hoje parece maio, um dia esplêndido,
Os que vamos morrer iremos aos mercados.
O que há neste exílio que nos move?
Digam-me os legumes sobraçados
E esta alegria.
O que escrevi, escrevi
Porque estava alegre.


Adélia Prado

Thursday, September 13, 2007

No Que Pensava?


Sempre Clarice

“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...].”

Clarice Lispector

Tuesday, September 11, 2007

É (2)

"Quanto à música, depois de tocada para onde ela vai? Música só tem de concreto o instrumento. Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical."

Clarice Lispector, in Água Viva

Indagação


- Que Farás Tu, Meu Deus, Se Eu Perecer?


Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?

Eu sou o teu vaso - e se me quebro?

Eu sou tua água - e se apodreço?

Sou tua roupa e teu trabalho

Comigo perdes tu o teu sentido.
Depois de mim não terás um lugar

Onde as palavras ardentes te saúdem.

Dos teus pés cansados cairão

As sandálias que sou.

Perderás tua ampla túnica.

Teu olhar que em minhas pálpebras,

Como num travesseiro,

Ardentemente recebo,

Virá me procurar por largo tempo

E se deitará, na hora do crepúsculo,

No duro chão de pedra.
Que farás tu, meu Deus?

O medo me domina.


Rainer Maria Rilke

MaR


"Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. 'Pois mãe, então o mar é o que a gente tem saudade?'"


João Guimarães Rosa, Campo Geral.
O Beijo, Hayez
Amo e conheço.

Eis porque sou amante


E vos mereço.


De entendimento

Vivo e padeço.

Vossas carências

Sei-as de cor.

E o desvario

Na vossa ausência.


Sei-o melhor.


Tendes comigo

Tais dependências

Mas eu convosco

Tantas ardências

Que só me resta


O amar antigo:Não sei dizer-vos

Amor, amigo

Mas é nos versos

Que mais vos sinto.

E na linguagem

Desta canção


Sei que não minto.


Hilda Hist

FiM

Somos como rosas que nunca se deram ao trabalho de
desabrochar quando deviam ter desabrochado e
é como se o sol estivesse farto de
esperar.

Charles Bukowski